Anarquismo, Desestatização e a Desescolarização da Educação

1. Introdução

Não existe consenso na definição da maior parte das teorias que propõem a melhor forma de viver em sociedade — aquilo que podemos chamar de filosofias políticas, como, por exemplo, comunismo, socialismo, socialismo democrata, democracia social (ou social-democracia), liberalismo social, liberalismo clássico, anarquismo, etc. Mas, dentre esses rótulos todos, certamente o maior dissenso prevalece a respeito do anarquismo.

No entendimento tradicional, antes que a coisa ficasse extremamente complicada, anarquismo queria dizer algo como “sociedade sem autoridade formalmente constituída“. Como a autoridade formalmente constituída para organizar as coisas na sociedade é o que denominamos de estado, anarquismo queria dizer “sociedade sem estado“. E como o estado é estruturado, organizado e operacionalizado através de um “governo” (que é a face humana, por assim dizer, do estado), anarquismo queria dizer “sociedade sem governo“.

Anarquismo, portanto, era o nome que se dava a uma sociedade sem autoridade formalmente constituída, sem estado, sem governo (se é que é possível haver uma sociedade desse tipo – que é um outro problema que tem mais que ver com a natureza humana). De qualquer forma, como uma sociedade desse tipo seria, ou pelo menos assim se supõe, uma sociedade em que a liberdade e a autonomia de uma só pode ser restringida por igual restrição à liberdade e autonomia de todos, e não há um poder superior, que fica acima de todos, e que detém monopólio no uso da força, e que, portanto, tem autoridade para restringir a liberdade de todos, o anarquismo era entendido também como sinônimo de libertarianismo: o máximo de liberdade possível (assumindo que liberdade total de todos seja algo impossível ou, pelo menos, impraticável).

Assim, vejamos.

George Woodcock, autor de um livro com o título Anarchism: A History of Libertarian Ideas and Movements (1962), parece sugerir, já no (sub)título, que os termos anarquismo e libertarianismo são basicamente equivalentes, mesmo que não exatamente sinônimos.

A primeira frase do livro de Woodcock é uma citação de Sébastien Faure (1858-1942), ativista libertário francês da segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20, que afirmou: “Quem quer que seja que nega a autoridade, e luta contra ela, é um anarquista”. Aqui parece haver uma sugestão de que a negação da (validade da) autoridade é uma coisa, e a luta contra ela, outra – embora ambas possam vir juntas, e não raro venham.

Na Introdução ao livro The Essential Works of Anarchism (1971), seu editor, Marshall S. Shatz, cita a seguinte definição, bem mais completa, de Anarquismo, proposta por Peter Kropotkin (1842-1921), um dos grandes nomes dessa tendência política:

“Anarquismo é o nome dado a um princípio ou teoria de vida e conduta segundo a qual a sociedade é concebida sem governo, a harmonia dessa sociedade sendo obtida, não por submissão a leis, ou por obediência a uma autoridade [suprema], mas por livres acordos estabelecidos entre os vários grupos, sejam eles territoriais, profissionais, constituídos com o objetivo de produzir, ou consumir, ou satisfazer a infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser civilizado”. [A definição de Kropotkin foi dada em seu artigo “Anarquismo” escrito para a memorável 11a edição da Encyclopaedia Britannica, publicada em 1910 (vol. I, p.914).]

William Godwin (1756-1836), também um nome importante nos primórdios da tradição anarquista (ele é o único desses grandes nomes a ter nascido no século 18), também caracteriza o Anarquismo como “uma bem concebida forma de sociedade sem governo“, em seu livro Enquiry Concerning Political Justice, de 1798 (também citado por Shatz).

2. Anarquismo Sem Qualificativos

Tenho a maior simpatia por aqueles que se contentam em parar por aqui, sem sentir a necessidade de acrescentar algum qualificativo ao termo anarquismo, que não seja libertário, ou, talvez, liberal, ou, talvez ainda, individualista. Creio que criar expressões como anarquismo comunitário, anarquismo mutualista, anarquismo sindicalista, anarquismo socialista, anarquismo comunista, etc., só complica a questão e cria confusão. Os dois últimos rótulos, por exemplo, anarquismo socialista e anarquismo comunista, apresentam um problema de coerência sério na definição de Anarquismo. Se o conceito prevê uma sociedade sem autoridade formal, sem estado, e sem governo, como associá-lo a duas tendências que propugnam, respectivamente, por um estado máximo e um estado total (ou totalitário)? Reconheço que uma sociedade anarquista pode até optar por operar com base em princípios capitalistas – mas me parece impossível que, optando por operar com base em princípios socialistas e comunistas, ela possa continuar a ser chamada de sociedade anarquista sem considerável abuso do sentido do termo.

Sou favorável, portanto, à decisão de Voltairine de Cleyre (1866-1912), uma anarquista americana do fim do século 19, começo do século 20, que dá atenção à educação, e pela qual me vi tomado de grande simpatia, embora só tenha vindo a travar conhecimento de suas ideias, e mesmo de sua curta existência, bem recentemente. Em um dado momento de sua vida, quando tentavam constrangê-la a admitir-se comunista (porque anarquista!), ela tomou a decisão de se designar simplesmente “anarquista”, e nada mais, sem qualquer qualificativo, afirmando, para aqueles que insistiam em ver nela uma comunista, que não era, nunca havia sido, e nunca seria comunista (porque anarquista!).

3. Anarquismo e Desestatização

Se estou basicamente certo até aqui, o Anarquismo será favorável a qualquer proposta que possa ser caracterizada como desestatização (ainda que gradual, parcial e lenta). Como, para quem já vive em uma sociedade estatizada, que somos todos nós, uma desestatização total e súbita parece impossível, o Anarquismo, para ser coerente, deve ser favorável a medidas que levem à desestatização da sociedade, ainda que essa desestatização se dê de forma lenta, gradual e restrita, desde que segura, e que represente um progresso na direção de uma desestatização irrestrita.

É por isso que não vejo muito problema em falar em anarquismo liberal e libertário, porque o liberalismo luta por um estado mínimo, e o libertarianismo por um estado tão mínimo que, como o sorriso do Gato Cheshire em Alice no País das Maravilhas, vai sumindo, sumindo, sumindo, até que desaparece de vez. Defender a transformação do estado em um estado mínimo, e, portanto, conviver, ainda que temporariamente, com um estado que se minimiza, é estar na direção certa no tocante ao anarquismo — algo que de modo algum acontece com os que defendem um estado máximo e um estado totalizante, que, a meu ver, andam, na contramão, em uma direção totalmente contrária do anarquismo.

Como a educação pública, em países como o Brasil e os Estados Unidos, é uma educação estatista (ou estatal), esforços no sentido de privatizá-la, ainda que de forma lenta e gradual, mas segura, desde que o objetivo final seja chegar a uma desestatização irrestrita de forma não traumática, fazem parte de uma tendência anarquista. Tenho em mente iniciativas como as charter schools e os vouchers, introduzidas nos Estados Unidos, sob a inspiração de ideias e sugestões de Milton Friedman (1912-2006), conhecido economista liberal.

4. Anarquismo e a Desescolarização da Educação

Em países em que a educação estatal (chamada de educação pública) predomina, o anarquismo deve ser favorável a medidas de privatização gradativa da escola estatal (como nas formas vistas no item anterior), ou (na verdade, e/ou) da total desescolarização da educação em geral, estatal ou privada, desde que essa desescolarização não admita, uma vez concluída, nenhum resquício de controle estatal sobre a educação então totalmente desescolarizada.

Não vou discutir aqui a privatização da escola estatal porque estou convicto de que a educação escolar, inclusive a privada, já deu o que podia dar e está com seus dias contados. Vou discutir rapidamente uma estratégia para a lenta e gradual desescolarização da educação.

A. O Anarquismo, a Liberdade e a Autonomia

O anarquismo surgiu como uma tentativa de aumentar os espaços de liberdade e autonomia dos indivíduos — principalmente em relação ao estado. Reconheceram os primeiros anarquistas que quanto maior é o espaço de ação do estado, tanto menor o espaço que sobra para a liberdade e a autonomia dos indivíduos. Essa, portanto, a primeira e maior luta.

As lutas subsequentes, como por exemplo, a luta das mulheres casadas contra a autoridade atribuída pelo estado ao marido, como cabeça e chefe da sociedade conjugal, dono de sua mulher e dos filhos do casal, que não podiam ter propriedade em seu nome, nem comprar e vender, e, no caso da mulher, que não tinha nem sequer poder pátrio sobre os filhos do casal, que era mantido com o ex-marido, no caso de uma separação, luta essa que caracterizou o início do movimento feminista, também é uma luta contra o estado, porque é pelas leis do estado que essa autoridade e esses poderes são atribuídos ao homem.

Outro exemplo é a luta dos trabalhadores contra os donos de empresas, que tomavam decisões unilaterais acerca do contrato de trabalho e as normas e regras que disciplinavam o trabalho, luta essa que era contra os donos de empresa e o estado, porque eram as leis do estado que davam esse direito aos donos de empresa. Assim a luta do movimento dos trabalhadores também era uma luta contra as leis do estado e a autoridade do estado de disciplinar as relações entre as pessoas — não só marido e mulher, mas também patrão e trabalhador.

E assim vai: a luta do anarquismo é uma luta pela liberdade e autonomia das pessoas para estabelecer laços afetivos, de convivência e de trabalho em termos acordados exclusivamente entre elas. Como diz Kropotkin, na passagem já citada:

“Anarquismo é o nome dado a um princípio ou teoria de vida e conduta segundo a qual a sociedade é concebida sem governo, a harmonia dessa sociedade sendo obtida, não por submissão a leis, ou por obediência a uma autoridade, mas por livres acordos estabelecidos entre os vários grupos, sejam territoriais, sejam profissionais, constituídos com o objetivo de produzir e consumir, bem como de satisfazer a infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser civilizado.”

A citação de Kropotkin fala em “acordos estabelecidos entre grupos“, mas os anarquistas logo perceberam que os grupos, se formalizados, como acabou se tornando o caso dos sindicatos, podiam facilmente se tornar uma nova fonte de opressão, com autoridade e poder delegados pelo estado, de modo que a luta anarquista que, no mundo do trabalho, foi, em um primeiro momento, viabilizada pelos sindicatos, veio a se tornar também uma luta contra essas entidades de representação profissional, que se tornaram opressivas. A criação, em países como o nosso, de um “imposto sindical” que o estado cobra das pessoas para transferir para os sindicatos, mostra que sindicatos que aceitam esse mecanismo de financiamento obrigatório são forçosamente dependentes do estado e, por conseguinte, pelegos.

Custou muito para que as pessoas percebessem que a escola pública era uma outra forma de o estado puxar para si mais uma significativa fatia da liberdade e da autonomia das pessoas, agora, em relação à educação de seus próprios filhos. A escolarização, que começou a ser vista como direito das crianças, logo passou a ser uma também obrigação para os pais. Mas, pari passu, essa obrigação não podia ser executada da forma escolhida pelos pais. As pessoas podiam ser punidas se não colocassem seus filhos na escola. Isso se deu, em especial, em relação à escola estatal, mantida com os impostos cobrados de todos, não só dos que estavam dispostos a colocar seus filhos na escola do estado. Quem optasse por colocar os filhos em uma escola privada, não estatal, tinha de pagar duas vezes: uma na forma dos impostos que sustentavam a escola estatal, a outra na forma de retribuição da escola privada que prestava o serviço — entre as quais as escolas religiosas. O estado aprovou leis que o proibiam de dar subsídios às escolas privadas, para forçar essas escolas a arcar com todos os custos de seu funcionamento e, assim, cobrar mensalidades que dissuadiam as pessoas de pagar pelos serviços delas (já que pagavam, com seus impostos, para sustentar a escola estatal). Dessa forma, mais e mais pessoas abriram mão de sua preferência, de sua liberdade de escolha, de sua autonomia, para aumentar o grau de controle do estado sobre suas próprias vidas.

B. Como Lenta e Gradualmente Desescolarizar a Educação?

É evidente que, em um país como o nosso, em que a tanto a educação básica como a educação de nível superior são totalmente escolarizadas e amplamente estatais (em especial no caso da educação básica, havendo maior espaço para participação da iniciativa particular na educação de nível superior), nenhuma desescolarização da educação pode ser feita de uma hora para outra, ou mesmo dentro do período de uma geração.

No entanto, é forçoso reconhecer que o movimento de desescolarização da educação tem, pelo menos cinquenta anos, pois um dos autores mais conhecidos a propô-la escreveu seu livro em 1970: Ivan Illich é seu nome e Deschooling Society (Sociedade sem Escolas) o seu famoso livro. Paulo Freire, amigo de Illich, escreveu na mesma época, que “ninguém educa ninguém”, e tampouco “alguém se educa sozinho”, insistindo que “nós nos educamos uns aos outros em comunhão” (isto é, pela interação, pelo diálogo, pela colaboração, pela cooperação) — e aqui vem um acréscimo importante: “mediatizados pelo mundo”. A mediação não é da escola nem do professor: é da nossa atividade no mundo, do nosso que fazer no mundo do trabalho, do lazer, da vida em sociedade.

A meta e a direção estão, portanto, claramente definidas. Mas não a estratégia e a tática, que podem ser diversas. A meta é a desescolarização da educação que a sociedade proporciona aos seus membros (deschooling, para os que já estão na escola, unschooling para os que ainda não estão cumprindo pena na escola). As estratégias podem ser home schooling (escolarização em casa), manter algo parecido com o processo de escolarização, mas sob controle exclusivo da família, como o fazem os Amish, community schooling (escola comunitária), manter algo como a atual escola, mas sob controle exclusivo da comunidade mais próxima, ambientes de aprendizagem “sem cara de escola”, mas, sim, centrado em aprendizagens consideradas úteis agradáveis, como academia de danças, clubes de debates, clubes de aprendizagem de língua estrangeira (não confundir com escolas de língua, que são escolas, ainda que não façam parte do sistema escolar reconhecido), clube de gastronomia, em que se aprende a cozinhar todo tipo de comida, etc.

As escolinhas de futebol já adotaram o modelo escolar de começo a fim. Escrevi um artigo, em 2006, para a Fundação Lego, argumentando que a qualidade do futebol brasileiro começou a cair quando as crianças deixaram de aprender a jogar futebol nos campinhos de rua, de maneira totalmente informal, e passaram a frequentar escolinhas de futebol, em que aprendem, com um professor-técnico, as particularidades de dar uma pedalada ou uma bicicletada…

Nos Estados Unidos, as chamadas charter schools e os chamados vouchers são processos de tirar a escola, ou boa parte de suas atividades, de debaixo do controle do estado — não de tirar a educação do âmbito da escola.

Por enquanto, é isso aí. A luta continua. Voltarei à carga.

Salto, em 8 de Dezembro de 2020.

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